Crítica: O Último Azul é viagem poética sobre propósito e autodescoberta

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Imagine que você chegou à casa dos 70 anos de idade e é convocado pelo governo brasileiro para arrumar suas malas e se mudar para uma colônia habitacional destinada aos idosos. Mesmo que você sinta que ainda tem muito o que fazer do lado de cá, o lado de lá é apresentado pelas autoridades como a única maneira dos mais velhos “desfrutarem” dos últimos anos de suas vidas, enquanto a parcela produtiva do país arregaça as mangas sem se preocupar com as necessidades e limitações da terceira idade.

Pode até parecer coisa de filme de ficção científica, mas a premissa de O Último Azul, filme do diretor Gabriel Mascaro (Divino Amor) que emocionou os brasileiros vencendo o prestigiado Urso de Prata na 75ª edição do Festival de Berlim, é mais real do que a ilusão da câmera cinematográfica permite transparecer.

Apostando na linha tênue entre a realidade e o sobrenatural, O Último Azul usa sua poderosa trilha sonora e o visual cheio de personalidade para contar a história de Tereza (Denise Weinberg), uma mulher que ousa sonhar em um momento da vida que é visto por muitos como o fim da linha.


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Aos 77 anos, Tereza ignora o que o sistema acredita ser o certo para ela, embarcando em uma aventura de autodescoberta, amadurecimento e liberdade que parece ter saído das páginas de um filme coming of age – aquelas histórias em que acompanhamos um adolescente ou jovem adulto amadurecendo depois de passar por eventos transformadores – mas com uma mulher encontrando sua própria versão de amadurecimento na terceira idade.

É justamente esse um dos pontos que transformam O Último Azul em um filme tão interessante para os dias atuais. Quase como uma poesia visual, o longa de Gabriel Mascaro consegue desenvolver uma trama aventuresca a partir de um olhar que não costuma aparecer em foco no cinema, seja internacional ou nacional: uma mulher idosa com mais de 70 anos que se recusa a enxergar a idade como um ponto final da vida.

Filme coloca uma mulher idosa no centro da história

Determinada a conquistar sua liberdade para decidir como deseja envelhecer, Tereza rompe com discursos estaristas da sociedade onde vive pelo simples ato da contestação. Ao longo da trama de O Último Azul, acompanhamos a protagonista em uma jornada particular para realizar um sonho que, à primeira vista, pode até parecer simples, mas que, para ela, faz toda a diferença.

É com essa vontade de provar para si mesma que ainda tem muito o que viver que Tereza se aventura pelos cantos da Amazônia. Em uma viagem que beira ao realismo mágico, estilo literário tão único da América Latina, a trama brinca com as nuances entre o real e a fantasia para colocar Tereza em uma jornada que a torna mais consciente de si, de suas vontades e de sua teimosia para não aceitar uma imposição governamental que parece esconder suas reais intenções por trás das propagandas acolhedoras.

O Último Azul acompanha a jornada de Tereza, uma mulher idosa que redescobre a vida (Imagem: Divulgação/Vitrine Filmes).

Tereza vai sentindo esse incômodo de que algo está errado do lado de lá à medida que vai adentrando o verde amazônico, encontrando bichos surreais e pessoas que passam por seu caminho como uma brisa refrescante de verão, para concretizar seu novo propósito de vida. É a partir da determinação da protagonista que Gabriel Mascaro brinca com uma ideia alucinógena por trás do desejo de Tereza, colocando-a em um caminho repleto de provações para que, assim, ela cresça emocionalmente.

Em vista disso, para além da mensagem de que nunca é tarde para redescobrir a vida, O Último Azul discute com sensibilidade questões envolvendo o etarismo e a maneira como pessoas idosas são excluídas da sociedade, mas sem deixar de destacar a importância de falarmos sobre o assunto. Assim, com a magia do cinema, a distopia apresentada pela trama pode até parecer muito distante de nós, mas basta superar essa ideia surreal para perceber que a distopia é aqui e agora.

Filme tem personagens cativantes e viagem surreal pela Amazônia

Tons de verde e azul são frequentes no filme de Gabriel Mascaro. Afinal, nada melhor do que essas cores para mostrar a força da natureza amazonense, trazendo toques de poesia e surrealismo que encantam o espectador. Embora já tenha apostado na ficção científica no passado, como em Divino Amor (2019), em seu novo filme Mascaro consegue tratar a jornada de Tereza com uma singeleza visual que ajuda a aprofundar o conflito que acompanhamos em tela com maior delicadeza e coesão.

Para isso, O Último Azul também aposta em personagens que cativam pelo mistério que deixam no ar, como uma reticências que nunca se revela. Cadu, personagem interpretado por Rodrigo Santoro (Bom Dia, Verônica), é um bom exemplo disso.

Apesar da participação de Santoro ser breve e não tão desenvolvida quanto a grandiosidade do ator pede, o personagem que ajuda Tereza no ponto inicial da jornada é intrigante, funcionando como um conto dentro da história da protagonista. Assim, mesmo com as limitações do tempo de tela, o ator parece confortável em cena, o que acaba contribuindo para o desenvolvimento da personagem de Denise Weinberg em sua jornada para concretizar seu grande sonho.

Filme faz viagem pela Amazônia com história poética e surreal (Imagem: Divulgação/Vitrine Filmes).

Outra menção honrosa da trajetória de Tereza fica para a atriz Miriam Socarrás (Violeta), que, além de marcar mais uma figura cativante que cruza o caminho da protagonista, também mostra o poder das relações femininas, em frente e fora das câmeras. Ao encontrar apoio em uma mulher, Tereza se permite abraçar o lado mais verdadeiro de si mesma, algo bonito de se ver em uma produção nacional justamente por ser ainda mais identificável para nós.

Diante de todas as personagens interessantes que deixam um gostinho de quero mais, O Último Azul pode até passar a impressão de que está “incompleto” ou parecer que perdeu o fôlego no final dessa jornada, mas é a força de Tereza que, certamente, prevalece. Uma mulher destemida que mostra como o simples ato de envelhecer não é uma tragédia, mas, sim, uma dádiva.

Chegando aos cinemas em um momento especial para o cinema brasileiro, pós vitória de Ainda Estou Aqui (2024) no Oscar e com O Agente Secreto (2025) de Kleber Mendonça Filho (Bacurau) prestes a dar o ar de sua graça, O Último Azul emociona com uma trajetória de autodescoberta, celebrando a terceira idade em uma sociedade que a enxerga como obstáculo.

Com uma performance poderosa de Denise Weinberg, o filme ressalta o poder do cinema nacional em contar histórias simples, mas que dialogam com aquilo que nós somos do melhor jeito possível. Afinal, não há nada melhor do que o nosso lar, seja o “lar” um espaço físico, uma pessoa, você mesmo ou aquele desejo de desbravar o mundo para encontrar o desconhecido. Tereza, sem dúvidas, compreendeu isso.

O Último Azul estreia no dia 28 de agosto nos cinemas brasileiros.

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