Guido Crepax: o arquiteto que levou o erotismo às HQs com a narrativa do cinema

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Se você acha que quadrinho europeu é só Asterix tomando poção mágica ou Tintim correndo atrás de contrabandistas, é porque ainda não trombou com Guido Crepax. Esse milanês de cara séria, mas imaginação turbinada, é basicamente o arquiteto que decidiu que HQ podia ser tão sexy, fragmentada e experimental quanto o cinema da nouvelle vague. Spoiler: ele conseguiu.

Guido Crepas (o “x” de Crepax veio depois, por puro estilo) nasceu em 15 de julho de 1933. Não dava para prever que o garoto, filho de médico e pianista amador, acabaria virando o papa do erotismo nos quadrinhos. Diplomado em Arquitetura pelo Politecnico di Milano, Crepax fez, em 1958, o que todo estudante sonha: ignorou a carreira tradicional e caiu na publicidade.

Criou capas de disco, ilustrações e campanhas para marcas como Shell, Campari e Esso — ou seja, enquanto os colegas projetavam prédios, ele já experimentava o design como narrativa visual. Em 1965, nasce Neutron, um herói meio esotérico, mas quem rouba a cena é Valentina, a fotógrafa de corte Chanel inspirada na atriz Louise Brooks. Dois anos depois, a personagem toma conta da HQ e da vida do autor. O cabelo preto em bob cut virou praticamente patrimônio cultural.


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Em 1973, Valentina vai para o cinema. Corrado Farina adapta Baba Yaga, um dos episódios mais psicodélicos da série. A crítica ficou dividida, mas a aura cult ajudou a fixar a personagem como ícone pop-erótico. A partir daí, entre os anos 1970 e 1990, Crepax mostrou que não tinha medo de clássicos pesados. Adaptou Histoire d’O (1975), Justine (do Marquês de Sade) e fez HQs de Emmanuelle (1978 e 1990). Tudo em edições luxuosas que hoje valem pequenas fortunas em sebos internacionais.

Crepax levou elementos do cinema aos quadrinhos (Imagem: Reprodução/Guido Crepax)

No fim da carreira, ainda mandou ver em adaptações de horror, incluindo um Frankenstein (2002) que encerrou sua trajetória. Morreu em Milão, em 31 de julho de 2003, aos 69 anos.

Como a linguagem de Crepax funciona

A narrativa de Crepax se parece bastante com uma montagem cinematográfica. Seus quadrinhos parecem storyboard de Godard ou Antonioni, com microquadros, closes em olhos, bocas e cigarros; cortes de eixo que confundem e excitam. O próprio design se tornou uma forma de contar a história, com as onomatopeias se tornando grafismos e padrões de roupa se transformando em textura da página — não é cenário, é parte da ação.

Crepax brincava bastante com as texturas (Imagem: Reprodução/Guido Crepax)

O erotismo funciona como estrutura. O sexo não é só tema, como também método de montagem. O ritmo das páginas funciona como o ritmo do desejo. Com isso, o sucesso de seu trabalho se consolidou com um estilo único. Crepax recebeu prêmios como Yellow Kid e Adamson em 1972 e, em 2001, entrou no Jack Kirby Hall of Fame — sim, o cara que inventou Valentina está no mesmo hall que o criador do Quarteto Fantástico.

Abaixo estão suas principais obras:

  • Valentina (1965–1996) — Não é só erotismo: é envelhecimento em tempo real, delírio surrealista, moda, psicanálise e sci-fi. O verdadeiro laboratório de Crepax.
  • Histoire d’O (1975) — Montagem radical, cortes, tipografia como orgasmo visual.
  • Justine (c. 1980–81) — Mostra Crepax como tradutor gráfico de textos considerados “inadaptáveis”.
  • Emmanuelle (1978; 1990) — O quadrinho que brinca de colagem pulp e cinema erótico de madrugada.
  • Ciclo “horror” (anos 1980–2002) — Drácula, Frankenstein e afins filtrados pela lente de um designer que via mais terror no detalhe de um zíper do que em litros de sangue.

Valentina virou símbolo de contracultura e resistência em plena Itália católica dos anos 1960–1970. Hoje está em coleções de museus, retrospectivas de editoras e teses acadêmicas. A “página-montagem” de Crepax ainda inspira artistas gráficos, cineastas e quadrinistas que enxergam na fragmentação visual não uma bagunça, mas uma nova forma de organizar o tempo e o desejo.

Guido Crepax arquitetou uma linguagem em que erotismo, moda, política e sonho se editam como cinema — e provou que quadrinho adulto pode ser tão sofisticado quanto qualquer grande obra de arte contemporânea.

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